“É hora de cada casa voltar a ser família”

Em sua visita ao Recanto Nossa Senhora de Lourdes, no mês de maio, o Superior Geral dos Servos da Caridade, Pe. Umberto Brugnoni, reservou um tempo para conversar conosco e nos dar uma pequena entrevista. Nesse bate-papo, ele falou um pouco sobre a crise da família no contexto social e sobre a necessidade de dialogar e aprofundar o sentimento de unidade entre os guanellianos, envolvendo os três braços missionários fundados por São Luís Guanella: os Servos da Caridade, as Filhas de Santa Maria da Providência e os Guanellianos Cooperadores.

“Penso que, a melhor coisa, é que é hora de voltar a ser cada casa (guanelliana) uma família. Dom Guanella traz o exemplo de Nazaré, de Maria, de José, de Jesus, como elemento de desafio para nós, diz Dom Umberto Brugnoni que, no dia 24 deste mês (Dia de Nossa Senhora Auxiliadora), completou 70 anos.

Além do “espírito de família”, característica impressa por São Luís Guanella, Pe. Brugnoni também falou sobre a vocação daqueles que se sentem chamados ao carisma guanelliano e agradeceu o trabalho e a dedicação dos mais de 20 mil operadores das casas guanellianas por todo o mundo. 

RecantoQuais os principais desafios da missão dos Servos da Caridade no mundo de hoje?

Pe. Umberto Brugnoni – Muito bem. Estou feliz em poder dizer que a obra de Dom Guanella está presente nos 5 continentes que compõem o mundo inteiro. Estamos em 24 nações, cada uma com suas características de caridade, seja voltado para a área educacional, no nível das escolas, seja voltado para a área assistencial, com idosos, pessoas com deficiência e com crianças de rua ou abandonadas, que encontram em nossas casas uma acolhida familiar e uma disponibilidade de fazê-las se sentirem realizadas em sua vida, apesar de seus limites e das experiências tristes que tiveram em seu passado.

Parece-me que a obra de Dom Guanella está expressando o melhor de si nas realidades que visitei nestes primeiros 15 dias do mês de maio, em Brasília, depois Mato Grosso, Amazônia, o nordeste do Brasil, e agora aqui, em São Paulo. Todavia, ainda faltam o Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras comunidades ligadas ao centro de Porto Alegre. Os coirmãos se orgulham de viver o carisma de Dom Guanella que é não só para dar o pão aos necessitados, mas também para dar o Senhor (Eucaristia), para promovê-los na integralidade da sua vida, na dimensão humana e espiritual.

Tenho visto muitas vezes, nos últimos dias, ser usado o termo de Dom Guanella: “Pão e Senhor”. Dá-se o pão para poder fazê-los sobreviver, estarem satisfeitos. E na Amazônia encontrei pessoas que precisam muito de pão para poder viver cotidianamente. E depois (dá-se) o Senhor, porque não só em cada homem, mesmo doente ou com limites de fragilidade, há a presença de uma pessoa, mas também (nela) devemos contemplar o mistério da filiação divina, onde cada um é uma pessoa digna de respeito e filho de Deus. A relação com o Pai para nós, guanellianos, é fundamental.

RecantoAs dificuldades que São Luís Guanella tinha em sua época, em relação ao carisma e à missão, são as mesmas de hoje ou eram outras?

UB – Bem, certamente na época de Dom Guanella as obras eram muito simples, com as irmãs (Filhas de Santa Maria da Providência), a maior parte eram creches e maternais, para crianças. Depois vieram algumas paróquias, mas normalmente (sempre havia) algum centro para crianças e jovens abandonados. O próprio Dom Guanella, em 1886, abre em Como (cidade da Itália) a primeira casa, que se chamava “Arca de Noé”, porque seu coração era tão grande que acolhia a todos. Então havia cegos, órfãos, coxos e meninos que estavam estudando para ir trabalhar nas famílias mais nobres da época.

Também na época de Dom Guanella havia tanta miséria, tanta pobreza como há hoje. Hoje temos talvez mais recursos e meios para enfrentar essa experiência de necessidade que percebemos na população que nos circunda. Por isso usamos todos os meios possíveis e imagináveis que temos ao nosso redor, assim como a realidade do Estado, do município, da política, da vida social, bem como da igreja, para sensibilizar a todos para esta atenção aos “últimos”.

Remete-nos à origem do princípio de Dom Guanella: “aqueles que os outros não querem, acolha-os, coloque-os à mesa com você, porque esses são Jesus Cristo”. É o tema que estamos desenvolvendo em nossa missão hoje. A mesma missão de ver Cristo no pobre, na pessoa frágil, na pessoa necessitada, e responder com os meios que temos. Dom Guanella tinha menos (recursos), hoje temos mais para responder com esses meios que temos e para que essa pessoa seja integrada dentro da sua realidade como pessoa.

Recanto – O método preventivo de São Luís Guanella tem como eixo a convivência em um ambiente de família. Como é usar hoje o método preventivo em uma sociedade que quer mudar o conceito de família?

UB – Certamente, assim como a família está em crise no contexto social, também o conceito de família, dentro das nossas instituições, precisaria de uma sacudida, para ser revisto, reavaliado e levado em consideração. Não quero dizer que estamos perdendo o espírito de família, que Dom Guanella tanto recomendava. Mas precisamos, como disse antes, talvez reavaliá-lo. Porque, no fundo, Dom Guanella queria isto: “não acolha a pessoa com deficiência, os anciãos, os pobres e só lhes dê um lugar para dormir ou para comer”, mas promova-o, a partir dos recursos pessoais que cada um carrega dentro de si.

As pessoas com deficiência, os idosos, os jovens são filhos da sociedade, do território, do mundo. E, cada um deve senti-los como seus próprios filhos

Uma expressão de Dom Guanella, em sua primeira casa, em Como (Itália), é que ele queria que o idoso chegasse ao meio-dia e que, quando se sentasse à mesa para comer, pudesse dizer: “o que estou comendo é também o resultado do meu trabalho, de minha colaboração”. Logicamente esse contexto de promoção envolve toda a realidade de uma casa. Não somente os padres, mas também os operadores.

Hoje temos no mundo mais de 20 mil operadores em nossas casas – cooperadores e não cooperadores – pessoas que estão colaborando conosco na missão. Em algumas casas também estão nossas irmãs (Filhas de Santa Maria da Providência), que administram de maneira particular como Filhas de Santa Maria da Providência e, nós, como Servos da Caridade. Mas, onde estamos todos presentes juntos – irmãs, sacerdotes e leigos -, nos amamos mais e percebemos mais o espírito de família, porque vemos que, apesar de sermos diferentes na espiritualidade e na mentalidade, assim como em contextos, idades e culturas diferentes, aquilo que temos juntos e que nos faz sentir unidos é precisamente o espírito de família: pertencer à mesma família de Dom Luís Guanella. E isso, para mim, é fundamental.

Quero dizer que, nestes últimos tempos, está emergindo a necessidade – e dialogaremos com nossas irmãs – realmente de aprofundar esse sentimento de maior unidade entre nós no enfrentamento (dos desafios) da missão. E penso que, a melhor coisa, é que é hora de voltar a ser cada casa (guanelliana) uma família. Dom Guanella traz o exemplo de Nazaré, de Maria, de José, de Jesus, como elemento de desafio para nós. E aquilo que principalmente hoje é exigido é justamente essa abertura ao acolhimento de outras pessoas, na região. Não uma família fechada, quase como se as pessoas com deficiência fossem apenas (responsabilidade) da Obra de Dom Guanella. As pessoas com deficiência, os idosos, os jovens são filhos da sociedade, do território, do mundo. E, cada um deve senti-los como seus próprios filhos e deve ser interpelado a colaborar com os outros para que esses filhos, que foram menos afortunados, digamos assim, na experiência de vida, possam ter um ambiente familiar e saudável que os promova, que os deixe tranquilos e que os ajude a crescer como pessoas, que têm seus limites, mas que são sempre pessoas maravilhosas.

O que recebemos de nossos assistidos, no contato direto em nossas casas, é algo que nos entusiasma. Mesmo quando estamos cansados, mesmo depois de um dia cansativo e não vemos a hora de terminar nossa missão, basta um sorriso, basta um gesto de acolhida, um abraço de um nosso assistido para nos sentirmos no sétimo céu. (Com isso) enfrentamos outro dia imediatamente, só porque queremos bem verdadeiramente a nossos irmãos. (Eles) são parte integrante da nossa vida.

Recanto – Como tem visto a vocação guanelliana hoje em dia e o que diria àqueles que se sentem chamados a essa missão?

UB – É uma boa pergunta e interessante, mesmo que seja difícil de responder. Porque vivemos em um contexto social, e vejo também aqui no Brasil como no mundo todo, que nossos jovens vivem uma dimensão um pouco de individualismo, de foco em si mesmo, de busca por posições sociais, de títulos acadêmicos. É por isso que hoje é mais difícil do que ontem colocar-se à disposição, para se doar, mesmo no que pode ser a orientação da nossa vida. O orgulho, por exemplo, da família de ver um médico, engenheiro e uma pessoa realizada na política, na vida social, para se colocar a serviço dos outros.

Para se tornar guanelliano não há necessidade de qualificações acadêmicas. É preciso ter um coração de pai, um coração de mãe, disponível para o serviço dos irmãos. Por isso, convido aqui também esses jovens: não pensem que a qualificação acadêmica, a posição econômica resolve todos os seus problemas de felicidade e realize tudo o que pode estar em seu coração ou na sua perspectiva de futuro. Coloque-se à disposição dos outros, dos mais pobres. Isto, segundo o Evangelho de Jesus Cristo, é a experiência mais emocionante e inspiradora da vida de cada homem.

O jovem que entra em nossa casa deve ter esse coração tão livre e estar disponível para amar os pobres 360°, por toda a vida. E é o contato com Deus que nos torna capazes disso.

Estou convencido de que o carisma de Dom Guanella não é fácil, porque não vamos às pessoas com deficiência por um dia, por um momento, por uma experiência, como tantas vezes os jovens fazem. Eles se entusiasmam e ficam disponíveis para um retiro, para um momento de celebração, para um momento de promoção social, para um encontro com o mundo da deficiência. Não, aqui se trata de se colocar à disposição dos pobres por toda a vida. E aqui talvez seja a dificuldade do nosso carisma. Mas, penso que também é o aspecto mais emocionante.

Um pai e uma mãe não amam seu filho só quando ele está precisando ou em um momento de felicidade. Uma mãe sempre o ama também, mesmo quando o filho se comporta mal, acaba na cadeia porque está drogado, porque roubou ou porque também talvez tenha matado alguém. O coração da mãe amará sempre seu filho. Não diminui essa intensidade de amor. Ela o repreende pelo que ele fez, mas esse amor não diminui. Aqui, eu digo que o jovem (vocacionado) que entra em nossa casa deve ter esse coração tão livre e estar disponível para amar os pobres 360°, por toda a vida. E é o contato com Deus que nos torna capazes de amar 360°, por toda a vida. Se não temos isso, estancaremos e teremos menos esse entusiasmo.

Dom Guanella tinha uma expressão muito forte, dizendo que “não vamos ao pobre, porque temos uma simpatia para com ele”, porque temos uma fraqueza em nossa psicologia frente a quem está mal. Mas “vamos ao pobre porque somos enviados por Deus, para uma missão”. Porque, dentro de nós há a força de Deus para realizar aquela ação que vamos cumprir juntos às pessoas com deficiência. E todos os gestos que fazemos – e Dom Guanella estava convencido (disso) – são gestos do próprio Deus através de nós. É como se emprestássemos nossa mão a Deus para acariciar o pobre, para ajudar o pobre, para abraçar o pobre. Essa é a missão guanelliana. Entusiasmante, mas difícil. Não por um momento, mas para sempre, por toda a vida.

Então, digo: coragem, jovem! Seja generoso! Porque a generosidade também faz parte da sua vida. Não tenha medo! A força que vem do Espírito, que vem de Cristo, basta para que você seja capaz de acolher essa força e a viva. Desejo também aos jovens brasileiros que respondam ao apelo da Caridade, quando virem essa pobreza que os cerca.

Recanto – Que mensagem daria aos operadores das casas guanellianas que, apesar do vínculo contratual de trabalho, sentem-se, de algum modo, vocacionados à obra de São Luís Guanella?

UB – Primeiro de tudo, gratidão, porque, se não tivéssemos os operadores em nossas casas, poderíamos fazer muito pouco. Eu disse antes que somos quase 600, entre professos perpétuos, sacerdotes e professos temporários. Mas, as necessidades do mundo são infinitas. Nossos leigos são, no mínimo, 20 mil que trabalham em nossas casas. Então, primeiramente, obrigado por entender que há uma necessidade de ficar ao lado desses meninos ou desses idosos e de ajudá-los a fazer sentir nosso carinho por eles.

Em segundo lugar, temos a pedagogia guanelliana, que trazemos do pensamento do fundador, mas também dos estudos pedagógicos atuais. Por isso propomos a eles um caminho de compartilhar essa missão justamente (com) essas diretrizes pedagógicas, porque somos um pouco uma instituição moral e temos nossos princípios.

Dom Bosco e Dom Guanella são os dois líderes que levaram adiante esse método. (...) É melhor prevenir um erro, uma queda, que esperar que aconteça para intervir. Isso me parece lógico.

Antes você falou do método preventivo. Dom Bosco e Dom Guanella são os dois líderes que levaram adiante esse método. E devemos manter esses elementos pedagógicos que certamente expressam o melhor do nosso serviço aos outros. É melhor prevenir um erro, uma queda, que esperar que aconteça para intervir. Isso me parece lógico. Por isso, agradecemos aos nossos operadores pelo que fazem. E, procurem cada vez mais assumir esses princípios pedagógicos guanellianas, que já provaram, há muitos anos, ter seus efeitos em nossos jovens. Temos experiência que, seguindo esse princípio pedagógico, se chega realmente a realizar a felicidade das crianças e a fazê-las sentirem-se realizadas.

Uma experiência agora me vem à mente, em nossa casa de Roma, onde um jovem que tinha dificuldade para entrar em diálogo com os outros, porque ele tinha dificuldade de pronúncia (fala) e dificuldades auditivas. Depois de anos e anos de perseverança, mesmo com essas metodologias modernas, o fato é que um dia ele conseguiu dizer “obrigado” e “oi” aos nossos operadores. Para os outros talvez ele não tenha dito nada, mas para nós foi a experiência mais feliz da nossa vida. Mesmo que tenha sido um “oi” ou um “bom dia”. Porque isso era o objetivo de uma série de tentativas de ajudar e apoiar esse rapaz para expressar alguma coisa. Saiu um “oi”, mas para nós foi como se fosse uma aula catedrática de um grande professor. Porque, aquilo foi o que naquele momento ele pôde expressar. Isso também agradecemos aos operadores.

Então, em frente, sua presença em nossas casas é verdadeiramente importante e deve ser cada vez mais qualificada através de sua profissão pessoal, mas também através desses princípios pedagógicos que Dom Guanella nos deixou e que interpretamos e inserimos em nosso projeto educacional guanelliano. Obrigado, vá em frente com coragem e com esperança. A sua missão é muito importante em nossas casas.

Confira o vídeo da entrevista com Pe. Umberto Brugnoni

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *